Monday, April 30, 2012

Standartenführer SS

Hoje é um dia especial. Mal preguei olho durante a noite, apesar de viver num bairro rico e calmo habitado por gente etiquetada, de fina educação. Depois da limpeza tudo fica mais limpo, sempre. Os da frente marcharam para Maidanek. Denunciei-os eu, no começo da minha ascenção nas SS.


É certo que brinquei com os filhos da família, quando éramos crianças, principalmente com Gavriella, a filha  mais velha. Mas essa, depois dos 15 anos de idade fez-se importante, snob, inacessível por detrás de toda a sua beleza (e como era bela, Deus meu!). Fomos quatro a fazer tudo dela numa arrecadação da sede do partido, aqui na cidade. Quase fomos expulsos por quebrar a lei anti-judaica que proibe qualquer contacto físico com essa gente, mas o naco que era Gavriella mereceu todos os riscos. É também verdade que a família dela tirou os meus avós da miséria, logo depois da I Guerra. Nada disso me perturba agora.

Hoje é um dia especial. Daqui a menos de uma hora estarei na comissão de recepção ao Obergruppenführer Heydrich. Olho a minha figura no espelho, o käppi autoritário a salientar o meu queixo anguloso, as insígnias, a gravata impecável, tudo em ordem, como se espera de um futuro líder SS.

Percorro-me no espelho e detenho-me nas folhas de carvalho afixadas na lapela. Todo eu sou brilho. Todo eu, talvez não possa dizer, porque nunca olho os olhos que me miram no espelho. Não conseguiria fazê-lo. Invade-me, por antecipação, uma horrenda vertigem de pânico na perspectiva de me confrontar com os meus sonhos de infância, com a ternura dos meus pais, com o carinho com que Gavriella me tratou as feridas depois de eu ter caído no jardim da casa dela (há tantos anos, parece noutra vida). As perguntas dilacerantes que o meu olhar me faria seriam de uma ousadia intolerável, teria de arrancá-los e denunciá-los. Não, hoje nada pode falhar. Hoje é o meu dia.



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